quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Direitos Humanos na Prisão - Prêmio Educação 2009

E era nada de nem noite de negro não
E era nê de nunca mais
E era noite de nê nunca de nada mais
E era nem de negro não
Porém parece que hágolpes de pê, de pé, de pão
De parecer poder
(E era não de nada nem)
Pipoca ali, aqui, pipoca além
Desanoitece a manhã
Tudo mudou”

O projeto de extensão Direitos Humanos na Prisão que coordeno juntamente com a Marcia Elayne Barbich na FADIPA recebeu o prêmio Educação 2009 do SINPRO. A premiação nos preenche de satisfação, afinal é o reconhecimento de um trabalho de quase cinco anos. Nasceu pelas mãos da Vanessa Chiari Gonçalves, quando a Faculdade de Direito do IPA engatinhava, seguiu por sua inspiração.
Inicialmente foi chamado Direitos Humanos do Preso, mas a experiência acumulada nas ações do projeto demonstrou que a problemática prisional compreendia uma complexidade que se amplia, capilarizando-se para além do apenado. Há uma abundância de sobrepunições envolvendo funcionários, familiares e sociedade em geral. No pós-panoptismo brasileiro todos estamos de alguma forma enredados nas linhas de força enunciadas pela realidade prisional. Nesse sentido, a prática superou a teoria e apontou para a necessidade de deslocamentos.
Assim como inúmeras outras ações da FADIPA, construímos um campo de discussão dos Direitos Humanos na Prisão que envolve servidores civis e militares, apenados, familiares, discentes e demais profissionais de áreas afins no qual a experiência opera junto com a teoria e pretende ir além tanto do bacharelismo acadêmico quanto do pragmatismo suicida dos esquadrões punitivos. Eis o marco teórico-metodológico: o imperativo do diálogo, portanto do dialógico, do enfrentamento de diferentes visões e da desconstrução do senso comum.
Antes mesmo de Hanna Arendt, mas desde as Eumênides de Ésquilo refletimos sobre o poder de perdoar como ato de refundação dos sujeitos sociais. Tememos a palavra, sem dúvida, por seus conteúdos apropriados pelo cristianismo e como acadêmicos docentes ou discentes não queremos passar por militantes ingênuos. Nas ações do projeto pensamos a possibilidade de enfrentar essa tensão que, como lecionava a filósofa alemã diz respeito essencialmente a experiência com o outro. Dessa forma, almejamos romper o círculo desastroso entre vitimas e carrascos, movendo-nos na direção de uma alteridade possível.
No aterro sanitário e social brasileiro, quem deseja matar todos os presos (como ouvi numa sala de aula em 2004) esquece que isso tornará inviável a sociedade. São vozes vitimizadas da nossa desigualdade crônica, de carrascos de plantão que plantam o fim de nossa possibilidade de viver social. Mas apontar indiscriminadamente para os presos como “vítimas do sistema” sem imputar-lhes as responsabilidades pelos seus atos é tão irresponsável quanto o desejo punitivo irrefreável. A vitimização social desconstrói a sociedade por que desconstituiu os sujeitos sociais, invalidando seus discursos e reiterando a irresponsabilidade de suas ações
Enfrentamos os desafios do perdão no ato educacional extensionista. Dizemos aos alunos nas visitas as casas prisionais que não perguntem ao preso o que o ele fez. Exercitamos o espiral da superação da díade crime-castigo e/ou vítimas-carrascos, privilegiando as experiências vividas. Acreditamos como Hanna Arendt que uma sociedade se constrói e se projeta na contemporaneidade pela reconstituição incessante de suas relações sociais. O perdão restaura o humano em sua sociabilidade nos termos do Respeito e da Responsabilidade condição indispensável para o exercício dos Direitos Humanos, dentro e fora de nossas prisões sejam elas quais forem.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O lixo da cidadania brasileira no texto "O cidadão de lixo" por Gilberto Dimenstein


Ao mesmo tempo, eles reclamam de morar numa cidade suja e culpam o governo pela incivilidade
Desenvolveu-se uma tecnologia de baixo custo para a construção de caixas-d'água a partir da reciclagem das lixeiras de plástico. A notícia deveria animar os defensores do ambiente se a descoberta ecologicamente correta não se transformasse, na cidade de São Paulo, num negócio lucrativo e penalmente incorreto: na madrugada, quadrilhas furtam as lixeiras, ajudando a sujar ainda mais as ruas. O efeito poluidor das quadrilhas é fortalecido pelos cidadãos comuns. Pesquisa realizada pela H2R, divulgada na semana passada, revela que 76% dos paulistanos admitem jogar lixo na rua, contribuindo para as enchentes e, assim, atraindo ratos e baratas. Ao mesmo tempo, eles reclamam de morar numa cidade suja e culpam o governo pela incivilidade. Essa contradição, quase cômica, revela a alma nacional e mostra a cidadania de lixo. A cidadania de lixo é a chave para entender uma boa parte dos problemas brasileiros. Consiste, em poucas palavras, em achar que a responsabilidade é sempre do outro, como se tivéssemos apenas direitos e nenhum dever. Joga-se o lixo na rua e se reclama de que o gari não está lá para catá-lo, enquanto os marginais se organizam para levar as lixeiras, convertidas em negócio.

A essência da cidadania de lixo foi captada pelo Datafolha: 38% dos eleitores paulistanos não se lembram em quem votaram para vereador. Entre aqueles com ensino superior, a porcentagem é menor, mas ainda altíssima: 26%. A tradução é a seguinte: se não se lembram em que votaram, isso significa que nem sequer acompanharam o desempenho do parlamentar. Assinaram uma espécie de cheque em branco. É uma alienação nacional: apenas 28% sabem em quem votaram para deputado federal, parcela semelhante à dos que não se lembram quem escolheram para as Assembléias Legislativas. Entre os que têm ensino superior, a taxa sobe para 48%, mas continua ridícula. Não chega, portanto, nem à metade dos eleitores mais educados. Jogar o papel no chão é apenas o símbolo de não se sentir dono da rua, imaginada vagamente como propriedade de um governo, do qual desconfiamos. E, aqui, mais uma contradição: não se confia nos políticos, mas se espera deles a solução. Não há desenvolvimento consistente sem que os indivíduos sejam protagonistas. Sabemos, por exemplo, que as melhores escolas públicas são aquelas em que os pais e a comunidade mais participam. Está mais do que provado que, quanto mais atento e participativo for o cidadão, melhor será a gestão dos recursos públicos.
Há um consenso, nas elites econômicas e intelectuais, de que a principal razão para o lento crescimento econômico brasileiro são os gastos públicos -gasta-se muito e mal. Isso se converte em muitos impostos, poucos investimentos, afetando a geração de emprego. É uma das razões, entre várias, da marginalidade juvenil e, portanto, da violência. Mostram-se as mais contundentes estatísticas de que o país deveria mexer nos rombos previdenciários. Não há mobilização porque, afinal, o problema não é nosso, mas dos "outros" -e os "outros", no caso os políticos, não querem se queimar por falta de apoio popular. Na lógica da cidadania de lixo, não há comoção com o fato de que pagamos, por ano, quatro meses de salário ao governo e de que apenas 5% dos alunos saem do último ano do ensino médio com conhecimento apropriado de língua portuguesa. O desperdício é generalizado nas esferas municipal, estadual e federal. Isso explica desde fatos como a alta incidência de crianças com anemia por insuficiência de ferro, os prefeitos comprarem livros didáticos de grupos educacionais privados e recusarem os gratuitos oferecidos pelo governo, até os milhões de recursos jogados fora para treinamento profissional desconectado do mercado de trabalho ou a decisão dos vereadores de aprovarem, quase por unanimidade, financiamento público para seus escritórios eleitorais. Explica também por que Lula se dispõe a destinar R$ 250 milhões para criar uma TV pública, enquanto as emissoras educativas estão sem dinheiro.

PS - Nessa rede de irresponsabilidades, entende-se o resultado da pesquisa divulgada na semana passada: 87% da população quer tratar, sem distinção, adultos e crianças infratoras. O problema não seria da falta de educação, da ausência de empregos, dos programas sociais ou da fragilidade policial, mas apenas dos marginais. Logo, o melhor é trancá-los todos juntos, quem sabe numa mesma cela. Assim como no caso do lixo, a violência nos faz viver todos na sujeira.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O "X" da Educação I - O cheiro do ralo

Há alguns meses atrás a governadora pediu silêncio aos professores. Para este professor de vinte e poucos anos de magistério e que tem um filho que já é professor, não há gesto mais eloqüente. Do alto do palácio (sim, ainda há palácios) emite-se uma ordem tão simplória quanto obtusa em política: a praça não é do povo. O silêncio é do povo.
Gesto controverso, diriam os editoriais domingueiros: “a governadora fazia referência a outra situação...”, “o gesto não significou afronta...”, etc. Em meio às lógicas interpretativas da pós-modernidade, eis um gesto antigo em inusitadas interpretações, ou melhor, releituras. Afirma-se: a governadora foi mal interpretada. Mas as mídias trazem manchetes informativas: “Magistério deflagra greve a 39 dias do fim do ano letivo”. Por que não esperaram o final do ano? Além disso, somos pedagogicamente lembrados dos sucessos da política de austeridade e recuperação do déficit público. Não há cenário mais previsível? Primeiro: promessas eleitorais, depois realismo orçamentário e finalmente o epitáfio: educação é despesa! No conflito distributivo que habita as entranhas do mercado e do Estado, compreende-se por que sete de cada dez brasileiros não entende o que lê.
Nos últimos anos temos convivido com essa enigmática macroeconomia pública e privada que nos oferece os farelos do “espetáculo do crescimento”, lembrando que poderia ser “bem pior”. O patamar de satisfação beira o lixo orgânico dos sentimentos e vem sempre carregado de temor presenteísta - “pelo menos não...”. Os governantes por sua vez, oferecem aquilo que Ulrich Beck chamou de “irresponsabilidade organizada”, acompanhando na esfera pública estatal a mesma lógica empresarial. Devemos fazer silêncio e agradecer, pois como dizia o guerreiro gaulês ao senador romano feito prisioneiro: “Deixo-vos a vida!”.
Mas voltemos aos professores e seus silêncios. Não seriam sucessivamente mal interpretados como a governadora? Diferentemente de outros profissionais, suas atitudes são, via de regra, desqualificadas por uma miríade de variáveis: ganha mal (ou muito bem), está “estressado” (ou trabalha pouco), tem formação rudimentar (ou “sabe muito”). Qualquer argumento (ou o seu contrário) permite contestar as ações profissionais de um professor. Ou se aplicam os mesmos argumentos e rigores aos dentistas, médicos, arquitetos, advogados, juízes, políticos profissionais, etc?
Aprofundemos a questão. Professores são os únicos profissionais a quem se solicita sacrifícios e de quem se espera resignação, altruísmo, superação, enfim, um ética judaico-cristã que Sísifo nos oferece cotidianamente. Mais ainda, inúmeras vezes são aqueles que gastam do próprio bolso para que as atividades aconteçam, afinal “os alunos não tem culpa”. Diferentemente, alguém recriminou publicamente a GM pelas demissões? Ou o governo pelos seus precatórios eternos? E, finalmente, o que pensa a sociedade sobre os baixos salários dos professores de seus filhos?
Amplamente destituídos de suas capacidades e sem perceber de onde se originam essas forças, os professores recebem, por outro lado, novas responsabilidades; formulando uma dissociação típica da modernidade tardia. Mais profunda que a questão salarial é o processo de destituição subjetiva que mina as forças do profissional e submete-o à arena do assédio moral e dos constrangimentos de inúmeros formatos. Na sociedade onde todos alegam serem os vitimizados é sempre o professor que deve ser flexível.
O magistério sempre foi um vértice na dinâmica social, captando as pulsões sociais, econômicas e políticas da sociedade e experimentando seu campo de tensões. No entanto, nos quadros da sociedade em que vivemos em que a responsabilidade individual ou social foi amplamente substituída por um jogo sucessivo de transferências, o professor recebe a (des)carga de condutas marcadas pela infantilização e vitimização. Na nova sociabilidade hedonista e presenteísta não há tempo para dedicação, disciplina, privação e outras experiências meritocráticas e pedagógicas. Ao professor cabe, apenas, o exercício temerário do simulacro.
Talvez por isso e pelos argumentos expostos acima, professores historicamente se vitimem, exercitando uma ética sacrificial e sua melodia de reclamos que termina por fechar essa dialogia perversa. Além disso, existem ainda as dificuldades de compreender-se profissional numa sociedade capitalista, algo que, acredito, deixamos para trás num passado recente; o que parece evidentemente em tempos de silêncios em praças públicas. E na sala dos professores é que, ao ficarmos cada vez mais perto do chão, vamos sentindo o cheiro do ralo e perdendo o respeito. Para onde foi nossa vontade de potência?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Lula não é uma pessoa comum

Novamente sua excelência prestou um deserviço à nação ao declamar como um rapsodo patrimonialista que o presidente do Senado não é uma pessoa comum. Mais ainda, criticou o “denuncismo” que costuma “não dar em nada”. Mas para além dos descalabros verbais de S. Ex. é preciso refletir um pouco sobre o artefato discursivo lulista, ele contém sábios ensinamentos sobre a “alma brasileira” e tem um destinatário certo.
Não entrarei na discussão político-partidária a respeito da copiosa carreira de José Sarney, oligarca, conservador, ex-udenista, sempre governista, como sabemos. Focar esse aspecto seria envolver-se no cipoal de posições políticas embaçadas de nosso tempo e, mais ainda, reforçaria a frase lulista: sim, Sarney não é uma pessoa comum. Vamos tomar outro rumo, menos personalista.
Quando Lula diz que “não vai dar em nada” se faz de espelho da sociedade, reflete o pensamento do cidadão (será pessoa?) comum, sua descrença nas instituições judiciárias e fornece mais materiais de construção para o conformismo típico de nosso patrimonialismo social. Se por um lado desmancha sua biografia (sim, Lula tem uma história), por outro faz eco ao sentimento popular, Dessa forma, recompõe seu repertório de identificações com as massas populares na base do “ele pensa como nós”. Nada mais pedagógico a um mandatário político brasileiro, expressão bem acabada de nossa tão esfarrapada esfera pública.
Ao dizer que Sarney “tem uma história” e, portanto não pode ser tratado como pessoa comum, o presidente falou muito! Lembrou que o Brasil não é feito de cidadãos, mas de pessoas, distinção sociológica importante em sociedades como a brasileira que operam num dualismo de códigos morais, éticos e jurídicos, para dizer o mínimo. Ter história para começar vale perante a receita federal e seu tribunal tributário e patrimonial, que nos lembra nossos incontornáveis deveres como contribuintes. Mas acima de tudo, ter história vale quando se trata de “antecedentes”, principalmente criminais assegurando ao cidadão (não à pessoa) desigualdades adicionais à nossa desigualdade social. Isso ajuda a entender sociologicamente nossa aversão ao cumprimento das leis: cidadania é via de regra uma categoria negativa no Brasil. Enfim, todos são iguais perante a lei, menos as pessoas incomuns.
Os pertinentes argumentos presidenciais não chegam a ser uma novidade, basta pesquisar nas falas dos titulares republicanos, leia-se da res pública. O manancial de favores, propinas e prebentas de toda a ordem para o amplo círculo de favoritos dos mandatários nacionais, estaduais, municipais alimenta os jornais sazonalmente. O exercício da política brasileira é essencialmente a prática da distribuição discricionária das leis ou de suas omissões. Não estamos no terreno das crises, das exceções, mas das práticas mais arraigadas e tradicionais de nossa sociedade.
Mas não deixemos nos enganar pelo “mundo Caras” dos escândalos, insistindo em demonizações. Os Sarney, seus mordomos e secretários, o presidente e seus lições de senso comum não devem nos fazer perder de vista o óbvio: eles são o Brasil que somente às vezes mostra a sua cara! Nesse carrossel de denúncias e seus difusos autores, os beneficiários não são localizados e tão pouco intimados a devolver o privilégio (estarão na Espanha?). Os Secretas brasileiros são realmente misteriosos, nunca aparecem, talvez por que estejam na nossa cara, transitando normalmente entre o público e o privado. Ainda nesta semana ouvi de mais de uma pessoa como seria bom ganhar 12 mil reais sem fazer nada. Brincadeira, professor!

Mas no Brasil a lei e seu cumprimento, sempre rimam com protestos, críticas, “jeitinhos”, lei do Gerson, teorias da conspiração e outras expressões de nossa sociabilidade tropical. Mas o brasileiro é mestre da dissociação: depois de reclamar da opressão estatal e da frieza da “letra dura das leis”, desloca-se para obter do Estado, onde jorra o leite e o mel, o espólio devido. Editais-relâmpagos, atos nem tão secretos, cargos de confiança, concursos bem direcionados, ajudas econômicas e fundamentalmente: empregos, empregos à mão cheia. ´
Nossa “razão cínica” como diria Jurandir Freire da Costa, desloca sempre as práticas patrimoniais para os outros. Dessa forma a colonização do Estado por interesses privados e sempre apresentada como uma realização exclusiva das elites, dos políticos, do Sarney. A arte da dissociação inclui deslocamentos incessantes, personagens difusos, responsabilidades não identificadas. Finalmente, a noção de uma ética pública no Brasil é absolutamente tíbia e pertence a esforços esparsos. Como esperá-la dos políticos se ela não existe entre nós?
E você, colocou seu carro na calçada hoje? Já pagou aquela “cervejinha” para o servidor público? Furou a fila, driblou os regulamentos e contou para os amigos? Conversou com candidatos para “arrumar uma boquinha”? “Quebrou o galho” para parentes e conhecidos?Condenou investimentos públicos em educação?Culpou os pobres e os nordestinos por nossas mazelas sociais?Afinal, como dizia o Justo Veríssimo: o “negócio é se arrumar”!

"Post-scriptum sobre as sociedades de controle", texto magistral de Gilles Deleuze

I. Histórico

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao ver operários, “pensei estar vendo condenados...”. Foucault (foto acima) analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior“, em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

II. Lógica

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em “pastor” laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes.

É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a “alma” da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.

III. Programa

Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.

O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas “substitutivas”, ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina “sem médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria “dividual” a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem “motivados”, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.



Gilles Deleuze
Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 219-226. Tradução de Peter Pál Pelbart. Texto original "Post-scriptum sur les sociétés de contrôle" escrito para L'autre journal, nro 1, maio de 1990, e publicado em Pourparlers, Les éditions de Minuit, 1990, pp. 240-247.